Regina Célia Brazolino Zuim, Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro-RJ, Brasil
ORCID 0000-0002-1093-7708
Jacqueline Ramos de Almeida, Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro-RJ, Brasil
ORCID 0000-0002-9507-0583
Aline Ribeiro de Almeida, Petrobrás, Rio de Janeiro-RJ, Brasil ORCID 0000-0002-0085-5645
RESUMO
O objetivo do trabalho foi de descrever a magnitude da associação entre tuberculose e uso de Substâncias Psicoativas (SPA) e interrupção do tratamento de tuberculose em usuários de SPA, estabelecendo as relações entre eles e os demais casos de tuberculose notificados no estado do Rio de Janeiro, no período de 2016 a 2022. Estudo de coorte retrospectivo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Tuberculose. Foram encontradas 25.705 (23,8%) notificações de tuberculose em usuários de SPA. O uso de álcool e drogas ilícitas teve associação com desfechos desfavoráveis nos casos novos (drogas ilícitas isoladamente, Odds Ratio ajustada (aOR)=2,31, intervalor de confiança (IC) 95%=2,12-2,52), ou em conjunto com álcool (aOR=2,42, IC95%= 2,20-2,67) e nos retratamentos (drogas ilícitas isoladamente aOR=2,10, IC95%=1,83-2,39), ou em conjunto com álcool aOR=1,99 (IC95%=1,73- 2,30). O uso isolado de álcool contribuiu para desfechos desfavoráveis em uma proporção menor de casos, tanto nos casos novos (aOR de 1,29, IC95%=1,17-1,43) como nos retratamentos (aOR=1,24, IC95%=1,05-1,47). O uso de SPA está associado a maiores chances de interrupção do tratamento da tuberculose. Entretanto, vulnerabilidades comuns aos doentes de tuberculose, usuários e não usuários de SPA, indica que outros estudos são necessários para esclarecer as associações.
Palavras-chave: Tuberculose; Drogas Ilícitas; Alcoolismo; Notificação de Doenças.
INTRODUÇÃO
No Brasil, assim como em outros países, a crise sanitária e social agravada pela pandemia de Covid-19 foi uma barreira de acesso ao cuidado da tuberculose (TB). Como consequência, espera-se um aumento no número de casos e óbitos relacionados à doença nos próximos anos (Brasil, 2023a). Mundialmente, em 2022, o número de casos novos de TB chegou a 7,5 milhões, o maior número desde o início do monitoramento global pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1995. Nesse mesmo ano, a doença foi a segunda principal causa de morte por um único agente infeccioso, ficando atrás apenas da COVID-19, e causou quase o dobro de mortes em comparação ao HIV/AIDS (WHO, 2023).
Entre 2020 e 2022, houve um aumento de 3,9% na taxa de incidência da TB, revertendo às reduções observadas nas duas últimas décadas. Essa reversão compromete as metas da Estratégia Global pelo Fim da TB, que prevê uma queda anual de 4 a 5% até 2025, e uma média de 17% ao ano entre 2025 e 2035 (WHO, 2022). Na segunda reunião de alto nível das Organizações das Nações Unidas sobre a luta contra a TB, em setembro de 2023, foram estabelecidas novas metas para melhorar a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da TB até 2027 (United Nations, 2023). No Brasil, o Ministério da Saúde anunciou, em 2023, que pretende alcançar as metas do Plano Brasil Livre da TB em 2030, cinco anos antes do previsto (Brasil, 2021; Brasil, 2024).
A TB, assim como o uso de substâncias psicoativas (SPA), acompanha a história da humanidade desde a antiguidade. As circunstâncias e motivações para o uso dessas substâncias mudaram ao longo do tempo, moldadas por diferentes contextos sociais e culturais. Como tem sido constatada a oferta, a demanda, a diversificação e as formas de obtenção destas substâncias também variaram no percurso do tempo e nos diferentes grupos populacionais, levando a circunstâncias distintas de vulnerabilidade individual, social e comunitária e impondo novos desafios para os cuidados com a saúde (Bastos, 2017).
O uso de álcool, tabaco e drogas ilícitas tem se tornado um problema de saúde pública mundial, gerando complicações significativas para os indivíduos e a sociedade. Em 2022, mais de 292 milhões de pessoas consumiram algum tipo de SPA, um aumento de 20% em dez anos, tendo como consequência o aumento nos transtornos associados ao uso (UNODC, 2024).
Estudos têm estabelecido associações do uso de SPA com os resultados desfavoráveis dos tratamentos de tuberculose, sendo a interrupção do tratamento um deles (Silva et al., 2018; Poersch; Dias-da-Costa, 2021). Em 2022, no estado do Rio de Janeiro, a taxa de interrupção do tratamento foi de 16,1%, maior que a taxa nacional (13,6%) e três vezes maior que a meta de 5% preconizada pela OMS (Rio de Janeiro, 2024). Trata-se, portanto, de um tema de relevância, pois além de manter o paciente em sofrimento e transmitindo a doença, também está associado a desfechos graves, como morte, resistência medicamentosa e novos casos de TB, aumentando os custos e a duração do tratamento (Brasil, 2019a).
De acordo com a OMS, o uso nocivo de álcool é responsável por mais de 200 tipos de problemas de saúde, comprometendo a qualidade de vida dos usuários e causando mundialmente mais de três milhões de mortes por ano (Andrade, 2023). No Brasil, é a substância consumida alguma vez na vida por mais da metade da população brasileira de 12 a 65 anos e os óbitos relacionados ao seu consumo representam 6,9%, valor superior à média global de 5,3% e à média da região das Américas, que é de 5,5% (Bastos et al., 2017; Andrade, 2023).
Em relação às demais substâncias, a Cannabis, conhecida vulgarmente como maconha, continua sendo a mais utilizada globalmente, seguida dos opioides, anfetaminas, cocaína e ecstasy (UNODC, 2023). No Brasil, a maconha é a mais consumida, seguida pela cocaína em pó (Bastos et al., 2017). Além das complicações já citadas, as atividades ilícitas associadas à produção e distribuição de drogas contribuem para a degradação ambiental, promovendo o desmatamento, o descarte indevido de resíduos tóxicos e a contaminação química (UNODC, 2023).
O aumento do número de consumidores de SPA supõe uma maior demanda por serviços de saúde que atendam às suas necessidades e se observe desigualdade no acesso aos cuidados de transtornos associados ao uso de substâncias (UNODC, 2024). De acordo com o Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), em 2021, registrou 400,3 mil atendimentos a pessoas com transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de álcool e outras drogas, a maioria deles ofertados as pessoas do sexo masculino com idades entre 25 a 29 anos (Brasil, 2023b).
Tuberculose e uso de SPA são, desta forma, dois desafios globais para a saúde pública. Embora atuem de forma independente, um pode amplificar os impactos indesejáveis do outro. A determinação social, expressa na pobreza, baixa escolaridade, alta densidade demográfica e normas culturais, é comum tanto à tuberculose quanto ao uso prejudicial das SPA. Esse fenômeno, denominado sindemia — termo cunhado pelo antropólogo Merril Singer para descrever a interação sinérgica entre doenças e fatores sociais, ambientais ou econômicos —, representa um desafio adicional para os sistemas de saúde, indicando que uma abordagem sistêmica pode melhorar os desfechos e práticas em saúde (Mendenhall, 2017). Tais constatações tornam evidente a importância do monitoramento sistemático de variáveis de interesse relacionadas aos dois agravos e a inclusão do uso de SPA e outras vulnerabilidades como parte do manejo dos casos de tuberculose.
Este estudo tem por objetivo descrever a associação entre variáveis sociodemográficas e a interrupção do tratamento de TB em usuários e não usuários de SPA, no estado do Rio de Janeiro, no período de 2016 a 2022.
MÉTODO
Foi realizado um estudo de coorte retrospectivo para conhecer a frequência do uso de (SPA) em doentes de tuberculose e a associação do uso destas substâncias com os resultados de tratamento de tuberculose, no estado do Rio de Janeiro. Foram elegíveis todas as notificações de tuberculose pulmonar registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) entre 2016 e 2022.
Na etapa de pré-processamento dos dados, foram excluídos os casos não encerrados (5614 – 5,1%), os encerramentos por transferência (2869 – 2,6%); entradas por transferência (4997 – 6,6%), notificações sem informação/ignorado sobre o uso de SPA (18019 – 16,5%), faixa etária de 0 a 9 anos (1876 – 1,7%), ou seja, as crianças segundo definição da OMS e do Ministério da Saúde (Brasil, 2017). No total, 39459 (36,2%) dos registros foram sinalizados para remoção do escopo do estudo. Vale notar que o total final de exclusões é menor do que o somatório dos percentuais apresentados em cada categoria, uma vez que um mesmo registro pode estar enquadrado em mais de uma categoria.
Para aumentar a qualidade da aplicação dos critérios, antes da etapa de sinalização para exclusão foram corrigidas divergências entre o que foi assinalado nos campos específicos álcool e drogas ilícitas e o que estava descrito no campo outros agravos (0,06%); as idades foram validadas realizando-se cálculo a partir da data de nascimento. A existência de duplicidades foi minimizada pela retirada das entradas e resultados de tratamentos por transferência. Assumimos que as duplicidades restantes estarão aleatoriamente distribuídas entre as categorias analisadas e que, portanto, não irão impactar neste tipo de estudo estatístico. Note-se que se está falando sobre as duplicidades que possam ter restado após todo o processo de retirada das transferências, realizado na Gerência de Tuberculose da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, ou seja, dados remanescentes. Neste sentido, se utilizou o pressuposto de variância constante (homoscedasticidade), que indica que a variância dos resíduos deve permanecer constante ao longo de toda a variável y.
A variável dependente foi o desfecho do tratamento por cura e por interrupção do tratamento (abandono).
No Brasil, considera-se cura como o término dos seis meses de tratamento quando há duas baciloscopias negativas ou, na ausência de comprovação bacteriológica, por critérios clínicos e epidemiológicos. Considera-se interrupção/abandono quando o doente não inicia o tratamento ou o interrompe por 30 dias consecutivos.
As análises foram estratificadas por tipo de entrada do caso. No SINAN, o caso novo é aquele que nunca fez uso da medicação antituberculosa ou o fez por menos de 30 dias. A recidiva é o caso de tuberculose ativa que foi tratado anteriormente e recebeu alta por cura comprovada ou por completar o tratamento. O reingresso após abandono acontece quando o caso de tuberculose ativa foi tratado anteriormente, por mais de 30 dias, mas que deixou de tomar o medicamento por 30 dias consecutivos ou mais (Brasil, 2019a). Comumente, tanto a recidiva após cura quanto o reingresso após abandono são considerados como retratamentos, padrão mantido para este estudo. O termo interrupção do tratamento será utilizado em substituição ao abandono.
Os desfechos foram comparados entre usuários de SPA, variável independente de interesse, e não usuários. As variáveis de ajuste individuais incluídas nas análises foram: sexo (masculino, feminino), raça-cor da pele (branca e não branca), faixa etária (<36 e > 36 anos), ser ou não população em situação de rua, status HIV e município de notificação diferente da residência. A categorização binária da idade em 36 anos foi estabelecida pelo cálculo da mediana.
Foram realizadas análises descritiva e bivariada para identificar os fatores associados ao sucesso ou insucesso do tratamento da tuberculose pulmonar. Na análise bivariada, foram consideradas variáveis cuja associação com resultados de tratamento se encontram amplamente descritas na literatura e conhecimento prévio de especialistas. Foram calculadas as Odds Ratio (OR) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). As variáveis que apresentaram associação com o desfecho na análise bivariada entraram em uma análise multivariada, com modelo de regressão logística para cálculo da OR ajustada (aOR). O uso isolado de álcool foi mantido na análise multivariada, apesar de não ter sido associado à interrupção do tratamento na análise bivariada pela ampla evidência da associação, encontrada na literatura.
Os dados foram analisados utilizando a linguagem de programação Python, incluindo as bibliotecas SciPy e statsmodels (Jones et al., 2001).
O estudo respeitou os preceitos éticos para condução de pesquisa com seres humanos. Foram utilizados, exclusivamente, dados secundários oriundos de levantamento realizado pela Gerência de Tuberculose da Secretaria de Estado da Saúde, com a finalidade específica de promover melhorias no atendimento aos doentes com tuberculose, respeitando o disposto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde e, portanto, não houve a necessidade da aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa.
RESULTADOS
Entre 2016 e 2022, foram notificados 108.129 casos de tuberculose no estado do Rio de Janeiro com informação qualificada sobre o uso de SPA. Desses, 25.705 (23,8%) eram usuários de SPA, com maior proporção de retratamentos do que o observado para os não usuários (Tabela 1). Em 2022, observou-se um aumento no percentual de usuários de SPA entre os casos totais (Tabela 2).
No modelo final de análise multivariada, ajustado para sexo, cor/raça, idade, tabagismo, situação de rua, coinfecção pelo HIV e residência igual ao município de notificação, o uso de álcool e drogas ilícitas foi significativamente associado à interrupção de tratamento entre os casos novos. O uso de drogas ilícitas isoladamente apresentou uma razão de chance ajustada (aOR) de 2,31 com intervalo de confiança de 95% (IC95%) de 2,12-2,52 e o uso combinado de álcool e drogas ilícitas teve uma aOR de 2,42 (IC95%=2,20-2,67). O uso isolado de álcool contribuiu para desfechos desfavoráveis em uma proporção menor de casos, com aOR de 1,29 (IC95%=1,17-1,43) (Tabela 3).
Entre os retratamentos, observou-se esta mesma associação, mas com razões de chance menores do que nos casos novos. O uso de drogas ilícitas isoladamente apresentou aOR de 2,10 (IC95%=1,83-2,39), enquanto o uso combinado de álcool e drogas ilícitas teve aOR de 1,99 (IC95%=1,73-2,30). Assim como nos casos novos, o uso isolado de álcool foi menos associado a desfechos desfavoráveis (aOR=1,24, IC95%=1,05-1,47) (Tabela 4).
Ser do sexo masculino, de raça não branca e ter até 36 anos também esteve associado a maiores chances de interrupção do tratamento. Entre essas variáveis, a idade foi o fator mais fortemente associado ao desfecho desfavorável, principalmente nos casos de retratamento (aOR= 2,10, IC95%=1,91-2,31), com chance comparável à apresentada pelos usuários de drogas ilícitas (Tabelas 3 e 4).
Entre as populações consideradas como de maior vulnerabilidade analisadas neste estudo, as maiores chances de interrupção do tratamento foram maiores nos casos novos, na PSR (aOR= 3,34, IC95%=2,91-3,83) do que nas pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) (aOR= 1,63, IC95%=1,49-1,80).
DISCUSSÃO
A proporção de usuários de SPA encontrada neste estudo foi significativa, considerando-se que a continuidade do tratamento para tuberculose é impactada pelo Transtorno do Uso de Álcool e o uso de Drogas Ilícitas (Asghar et al., 2009; Araújo; Vieira; Lucena Junior, 2017). Nota-se que em 2022 houve um aumento na proporção de usuários de SPA, que poderia estar associada ao aumento no consumo das substâncias no período pandêmico, conforme o relatado no relatório mundial sobre drogas (UNODC, 2024), ou a um aumento do adoecimento por tuberculose neste grupo, o que demanda continuidade no monitoramento desta taxa.
Embora os dados acima já sejam preocupantes, há que considerar que tanto a proporção de usuários quanto a gravidade do problema podem estar subestimadas. No Brasil, não há critérios padronizados para o preenchimento das variáveis "uso de álcool" e "uso de drogas ilícitas" no SINAN, e supõe-se que sejam incluídos apenas aqueles que declaram uso regular, uso abusivo ou que tenham dependência química. Esta tendência já foi observada entre profissionais de saúde (Formigoni; Duarte, 2018).
Além disso, cerca de 20% das pessoas que acessam a rede básica de saúde, incluindo serviços para tuberculose, não revela o uso de SPA nem a intensidade do consumo (Formigoni; Duarte, 2018). De todo modo, a OMS considera que não há limite seguro para o consumo de álcool e que os danos à saúde aumentam proporcionalmente à quantidade consumida (WHO, 2018; Rehm et al., 2020). Este pressuposto está incorporado na Política Nacional sobre Drogas, que recomenda a identificação precoce de indivíduos com potencial risco de uso de SPA, visando intervenções terapêuticas ou preventivas (Brasil, 2019b).
Desta forma, seria importante avaliar rotineiramente essa condição e integrar o seu gerenciamento ao manejo dos casos de tuberculose. No entanto, a ausência de critérios bem estabelecidos para a notificação das variáveis: uso de álcool e uso de drogas ilícitas, dificulta as ações de vigilância em saúde e limita o conhecimento dos padrões de consumo associados aos resultados de tratamento da tuberculose, em nosso meio. Normatizações nacionais seriam importantes para a qualificação dos dados e para o manejo integrado dos casos.
A proporção de retratamentos encontrada neste estudo entre os usuários de SPA (31,9%) é cerca de duas vezes maior que a dos demais doentes, achado que reflete as taxas mais baixas de sucesso de tratamentos encontradas neste grupo e, também, bem documentadas na literatura (Brasil, 2019a). O grupo formado pelos retratamentos apresenta maior chance de desenvolver desfechos desfavoráveis para a doença, tais como óbito, nova interrupção e resistência aos medicamentos, representando uma ameaça adicional ao controle da tuberculose (Silva et al., 2017).
As maiores chances de interrupção do tratamento foram encontradas para pessoas do sexo masculino, não brancas e com menos de 36 anos, tanto nos casos novos como nos retratamentos. Estes achados são compatíveis com outras pesquisas realizadas no Brasil e em outros países. No Brasil, dois em cada três casos de tuberculose ocorrem em homens, principalmente em jovens (Brasil, 2024). Portanto, em idade produtiva e mais propensos ao uso de álcool e drogas, o que está associado à interrupção do tratamento (Chirinos; Meirelles, 2011).
Entretanto, a análise multivariada demonstrou que resultados desfavoráveis de tratamento ocorrem de forma independente, apontando para a presença de outras vulnerabilidades nesses grupos. Explorar essas vulnerabilidades requer, entre outros, uma consideração mais aprofundada das questões de gênero, uma vez que os homens, devido a normas sociais, tendem a negligenciar a própria saúde. Outro recorte a ser aprofundado é o de raça, pois no Brasil, ser pardo ou preto é um marcador de desigualdade social, refletido nos piores indicadores socioeconômicos e de saúde, com a pobreza sendo um fator de risco relevante para a TB (Brasil, 2024).
De uma forma geral, houve diferenças nas situações de encerramento, segundo o tipo de entrada. As análises mostraram que o uso de drogas ilícitas, isoladamente ou em combinação com álcool, aumentou as chances de interrupção do tratamento mais de duas vezes entre os casos novos. A relação entre o uso de drogas e álcool e os resultados de tratamento da tuberculose tem sido amplamente estudada, tanto no Brasil quanto no mundo, concluindo que o uso destas substâncias são fatores de risco significativos para resultados malsucedidos do tratamento, tais como a morte e a interrupção e falência do tratamento (Chirinos; Meirelles, 2011; Silva et al., 2017). Neste estudo, observamos baixo impacto do uso isolado do álcool nos resultados de tratamento, o que difere do encontrado em outros estudos (Andrade, 2023; Ragan, E. et al., 2020), outras investigações serão necessárias para esclarecer tais achados.
Resultados semelhantes ao uso de drogas ilícitas foram observados entre pessoas em situação de rua, com chances ainda mais elevadas de interrupção. Embora os retratamentos tenham as proporções de interrupção do tratamento impactadas pelo uso de SPA, as razões de chances foram menores que nos casos novos. Ou seja, nessas vidas que tratam uma e outra vez a tuberculose, estão implicados fatores que vão além do uso de SPA, de viver em situação de rua, de ser uma PVHA.
Aponta-se, assim, para a possibilidade da existência de outras vulnerabilidades, sejam de ordem individual, social ou programática, comuns aos usuários e não usuários de SPA, como determinantes de insucessos terapêuticos. É importante que as equipes de saúde busquem arranjos tecnológicos e incorporem nas práticas de cuidado as tecnologias leves/relacionais, valorizando o acolhimento, a escuta ativa e o saber dos usuários (Merhy; Feuerwerker, 2016).
O uso e a dependência de SPA têm uma determinação multifatorial, e a subjetividade dos usuários deve ser considerada para compreender suas motivações, limites e potencialidades. É inaceitável tratar o uso de SPA como uma questão moral ou desvio de caráter, pois isso contribui para o aumento da vulnerabilidade e se constitui em uma barreira de acesso aos serviços de saúde (Guerra; Vandenberghe, 2017).
As interações entre este agravo e a tuberculose são potencializadas por contexto social desfavorável, ou pela interação direta entre os dois agravos e o ambiente social. Desta forma, as forças que unem e determinam ambos demandam abordagem para além de soluções puramente biomédicas, que possuem pouco alcance ante grupos mais vulneráveis. Para o enfrentamento desta sindemia, como ocorre com outras, pressupõe- se a atuação de um sistema de saúde estruturado com foco na integralidade do cuidado e orientado para abordar as causas sociais e estruturais existentes. Igualmente, se pressupõe o desenvolvimento de políticas sociais e de saúde estruturadas de forma integrada e com o envolvimento da sociedade civil e das diversas áreas de atuação do Estado. Neste sentido, no país tem ocorrido um investimento no enfrentamento da tuberculose, norteado pelo Plano Brasil Livre da TB, a se consolidar nos estados e municípios, que se apoia em pilares que organizam as ações em torno da prevenção e cuidado integrado centrados do usuário-cidadão, com apostas no fortalecimento da participação da sociedade civil e das articulações intra e intersetorial (Brasil, 2021).
CONCLUSÃO
Em 2022, se observou aumento no número de casos novos de TB, dentro de uma projeção realizada pela OMS, resultado da pandemia de Covid-19. Esta realidade ocorre de forma paralela aos esforços mundiais para o fim da TB como problema de saúde pública até 2035. O aumento no uso de SPA também tem sido constatado nos últimos dez anos, tendo como consequência o aumento nos transtornos associados ao seu uso.
Estudos têm estabelecido associações do uso de SPA com os resultados desfavoráveis dos tratamentos de tuberculose, sendo a interrupção do tratamento um deles. Em consonância com a literatura, neste estudo foi evidenciada uma importante associação entre o uso dessas substâncias, principalmente as drogas ilícitas, e a interrupção do tratamento da tuberculose.
Embora o estudo tenha sido estratificado por tipo de entrada e variáveis de ajuste individuais tenham sido utilizadas, ficou evidenciada a necessidade de aprofundamentos para conhecer ou afastar a presença de outras vulnerabilidades, comuns aos usuários e não usuários de SPA. Tais vulnerabilidades não são possíveis de serem identificadas nos sistemas de informação de vigilância em saúde, como o SINAN.
Considerando que tuberculose e uso de SPA compõem uma sindemia, avalia-se como importante a integração da abordagem do uso dessas substâncias ao manejo da tuberculose.
CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES
ZRCB, AAR e AJR contribuíram na concepção e delineamento do problema e desenho metodológico do estudo. AAR e AJR contribuíram no levantamento e estruturação dos dados. ZRCB contribuiu na redação da primeira versão do manuscrito. As três autoras realizaram a revisão geral da primeira versão e análise dos dados. Todas as autoras aprovaram a versão final e são responsáveis por todos os aspectos do estudo, incluindo a garantia de sua fidedignidade e integridade.
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