‘UMA NOVA VISÃO DO TRABALHO E DE NÓS MESMOS’ EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE COM AGENTES COMUNITÁRIOS

DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DE MARICÁ / RELATO DE EXPERIÊNCIA


Claudia dos Santos Rodrigues, Diretoria de Ensino, Produção do Conhecimento e Tecnologias da Fundação Estatal de Saúde de Maricá, Maricá, Brasil.

ORCID 0009-0008-2398-9858

Patrícia Cavalcanti Schmid, Núcleo de Educação Permanente em Saúde, Diretoria de Ensino, Produção do Conhecimento e Tecnologias da Fundação Estatal de Saúde de Maricá, Maricá, Brasil.

ORCID 0000-0002-0712-4132

Carlos José Moreno, Diretoria de Ensino, Produção do Conhecimento e Tecnologias da Fundação Estatal de Saúde de Maricá, Maricá, Brasil.

ORCID 0000-0003-4399-2268

Zulmira Carvalho, Núcleo de Educação Permanente em Saúde, Diretoria de Ensino, Produção do Conhecimento e Tecnologias da Fundação Estatal de Saúde de Maricá, Maricá, Brasil.

ORCID 0009-0008-6225-1194

Rachel Novaes Gomes, Diretoria de Ensino, Produção do Conhecimento e Tecnologias da Fundação Estatal de Saúde de Maricá, Maricá, Brasil.

ORCID 0000-0003-1889-9942

Gabriel Vieira Noronha, Diretoria de Ensino, Produção do Conhecimento e Tecnologias da Fundação Estatal de Saúde de Maricá, Maricá, Brasil.

ORCID 0009-0008-6573-0027


RESUMO


O presente artigo expõe a experiência da equipe do Núcleo de Educação Permanente em Saúde da Fundação Estatal de Saúde de Maricá, com a realização da ‘Capacitação Acolhimento e Linhas de Cuidado’, no período de 18/10/22 até 01/06/2023, a partir de uma demanda identificada em levantamento realizado junto aos profissionais das Unidades de Saúde da Família de Maricá. A referida capacitação abarcou 310 profissionais, dentre Agentes Comunitários de Saúde e Auxiliares Administrativos, havendo uma adesão de 97,4% dos participantes, chegando ao final do processo 299 deles. Os temas discutidos de forma interativa e articulados com os princípios da Educação Permanente em Saúde versaram sobre acolhimento de acordo com a Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde, escuta qualificada, Comunicação Não Violenta em Saúde e linhas de cuidado. Como resultados, verificamos efeitos de ressignificação das práticas, reflexão crítica sobre os impasses nos processos de trabalho e na percepção dos profissionais capacitados sobre suas funções profissionais e seus modos de comunicação.


Descritores: Educação permanente; Agente comunitário de saúde; Humanização da assistência.

INTRODUÇÃO


A construção de ações de educação permanente em saúde (EPS) é um processo fundamental para fomentar a qualidade humana e técnica dos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Tais ações precisam ser desenvolvidas conforme definido pelo conceito de EPS, como “produção de conhecimentos no cotidiano das instituições de saúde, a partir da realidade vivida pelos atores envolvidos, tendo os problemas enfrentados no dia a dia do trabalho e as experiências desses atores como base de interrogação e mudança” (Ceccim; Ferla, 2009).


Nessa direção, objetivamos demonstrar neste relato de experiência uma ação de EPS cujo objetivo maior foi ofertar um amplo processo de articulação entre prática e teoria para Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Auxiliares Administrativos (ADM), personagens essenciais das equipes e serviços de saúde. Os ACS por serem a principal ligação da atenção primária à saúde (APS) com a comunidade e os ADM por sua atividade direta junto à população, no que tange à organização dos pedidos de exames e documentação nas unidades de saúde.


Assim, o objetivo central deste relato será descrever, analisar e divulgar a experiência acima citada e os efeitos identificados pelos participantes em suas práticas profissionais, além dos efeitos percebidos pela equipe condutora do processo. Tal ação foi desenvolvida na cidade de Maricá.


DESCRIÇÃO DO CAMPO


Maricá é um dos 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro, localizado na Região Metropolitana II, fazendo limites com Itaboraí, São Gonçalo, Rio Bonito, Niterói, Saquarema e Tanguá. Apresenta uma extensão territorial de 361.572 km² e sua população de acordo com o censo demográfico de 2022 é de 197.277 habitantes (IBGE, 2022).

A cidade apresenta uma ampla cobertura de Estratégia de Saúde da Família (ESF). Em novembro de 2020, o município já contava com 46 eSF (equipes de saúde da família). Em 2022, a cidade passou a ter 54 eSF, distribuídas de acordo com os quatro Distritos locais: Central, Ponta Negra, Inoã e Itaipuaçu. Estimativamente, Maricá apresenta 324 ACS, considerando a presença de seis ACS por eSF.


Além de possuir grande beleza natural, o município desenvolve projetos sociais que buscam a melhoria da qualidade de vida de sua população, dos mais conhecidos, ônibus e bicicletas tarifa zero e moeda social mumbuca. A cidade que preza, há anos, através do poder local, pela busca de justiça social, segue investindo na melhoria da gestão em saúde, na ampliação e qualificação das eSF.


Em 2022, a Prefeitura de Maricá aprovou a criação da Fundação Estatal de Saúde de Maricá (FEMAR). Em sua estrutura organizacional, essa fundação conta com a Direção de Ensino, Produção do Conhecimento e Tecnologias (DEPCT), a qual abriga, dentre outras, a Superintendência do Núcleo de Educação Permanente em Saúde (NEPS), com responsabilidade pelas ações de EPS da FEMAR.


O NEPS/FEMAR foi construído, em conformidade com a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), sendo fomentador de ações político- pedagógicas, estrategicamente concebidas para o SUS, como formação e desenvolvimento de seus trabalhadores. A PNEPS foi aprovada na XII Conferência Nacional de Saúde e no Conselho Nacional de Saúde (Ceccim; Ferla, 2009).


METODOLOGIA

No seguimento das diretrizes acima citadas, a fim de conhecer as reais necessidades dos trabalhadores de saúde da APS de Maricá, a equipe NEPS/FEMAR realizou um levantamento quanti-qualitativo em todas as 25 Unidades de Saúde da Família (USF) existentes na cidade, aplicando um questionário com questões sociodemográficas e perguntas sobre demandas para capacitações em EPS. Cabe ressaltar que tal questionário foi realizado como levantamento interno, parte do processo de trabalho para identificação de demandas, sem dados sensíveis e não será detalhado nesta publicação.


Todas as 25 USF foram visitadas, havendo uma reunião com os membros das eSF presentes no momento da visita. Os questionários foram preenchidos por todas as categorias profissionais e, traremos neste artigo, a análise dos dados coletados acerca das demandas levantadas para EPS.


Obtivemos 361 respostas aos questionários, identificadas como de 183 ACS, 29 médicos(as), 44 enfermeiros(as), 19 auxiliares de saúde bucal, 16 assistentes farmacêuticos (AF), 52 técnicos de enfermagem (TE) e 18 dentistas. Em uma análise qualitativa, verificou-se como solicitação mais preponderante para capacitação, a temática do ‘Acolhimento’, tendo aparecido como tema citado na maioria das respostas.


Diante da demanda mais relevante identificada, foi desenvolvida a proposta de uma Capacitação em Acolhimento e Linhas de Cuidado na APS, voltada para os ACS e ADM, visto que dentre as respostas para esse tema, verificamos um alto índice de solicitações dentre os ACS e, a pedido dos gestores, houve a inclusão de ADM no processo por seu papel importante junto à comunidade. Em sendo assim, a ação em EPS, descrita e analisada neste artigo, surgiu a partir das necessidades identificadas através dos trabalhadores da APS de Maricá, quanto à qualificação de suas práticas no cotidiano da assistência territorial.


Ressaltamos ainda que, desde o levantamento de demandas, elaboração da ementa até os encontros propriamente ditos, em formato roda de conversa, foram orientados pelos princípios norteadores da EPS, a saber, aprendizagem significativa, focada nas experiências e vivências pessoais dos alunos e ensino problematizador, embasado pela crítica da realidade e sem superioridade do educador em relação ao educando (Ceccim; Ferla, 2009).

CAPACITAÇÃO PROPRIAMENTE DITA: O PROCESSO


A partir da maior demanda identificada, a equipe do NEPS em questão iniciou a formulação da ementa da capacitação e as negociações institucionais para a liberação dos ACS e ADM para participação no processo. Foi realizada uma apresentação da proposta para o Conselho Executivo da FEMAR e negociações com a Organização Social ainda contratante dos profissionais da APS, agilizando os acordos e concordâncias de todos os níveis hierárquicos.


A capacitação foi realizada por Distritos de Maricá, de 18/10/2022 a 01/06/2023. Foram elaboradas seis turmas por Distrito com quatro aulas cada. No Distrito Central houve um total de 98 participantes, sendo 87 ACS e 11 ADM. No Distrito Ponta Negra, um total de 67 participantes, sendo 58 ACS e nove ADM. No Distrito Inoã, um total de 65, sendo 59 ACS e seis ADM. E, por fim, no Distrito Itaipuaçu, um total de 80 participantes, sendo 67 ACS e 13 ADM. Tivemos, assim, 310 participantes durante o processo.


As aulas foram pensadas no formato mais interativo possível, como rodas de conversa com uso de dinâmicas e atividades em grupo. Os professores facilitadores, membros da equipe do NEPS/FEMAR, realizaram as aulas como transmissão de conteúdo via troca de experiências. Tais facilitadores contavam com uma longa jornada atuando nos serviços de saúde do SUS, tanto em USF como em unidades hospitalares, fazendo das suas experiências profissionais, um recurso potente, para compartilhamento de vivências, durante a capacitação.

As aulas foram organizadas abarcando as seguintes temáticas: SUS, história e o papel do ACS; acolhimento segundo a Política Nacional de Humanização (PNH); Política Nacional de EPS; Comunicação Não Violenta (CNV) em saúde; atribuições dos ACS ao longo da história e linhas de cuidado. Foram apresentados e discutidos conceitos fundamentais para uma prática transformadora no SUS, tais como, acolhimento como postura ética, triagem e classificação de risco, escuta qualificada através do uso da ferramenta da CNV, linhas de cuidado, projeto terapêutico singular, sigilo médico e ética profissional. Todos esses conteúdos foram apresentados em material didático distribuído para cada participante. A última aula de todas as turmas versou sobre a apresentação de trabalhos em grupo, articulando os conceitos discutidos com reflexões sobre a prática.


Focar na transmissão conceitual, clarificando os conceitos e ouvindo as vivências dos alunos, acerca de sua aplicabilidade prática, foi o cerne principal das aulas. Entender quando as práticas se afastam do que é concebido conceitualmente e, como refletir criticamente sobre essas mesmas práticas, buscando sua reaproximação com a diretriz conceitual foi à proposta político-pedagógica orientadora da transmissão pelos professores facilitadores.


O conceito de acolhimento foi discutido, de acordo com o definido na PNH:


É exatamente nesse sentido, de ação de “estar com” ou “estar perto de”, que queremos afirmar o acolhimento como uma das diretrizes de maior relevância ética/estética/política da Política Nacional de Humanização do SUS: ética no que se refere ao compromisso com o reconhecimento do outro, na atitude de acolhê-lo em suas diferenças, suas dores, suas alegrias, seus modos de viver, sentir e estar na vida; estética porque traz para as relações e os encontros do dia-a-dia a invenção de estratégias que contribuem para a dignificação da vida e do viver e, assim, para a construção de nossa própria humanidade; política porque implica o compromisso coletivo de envolver-se neste “estar com”, potencializando protagonismos e vida nos diferentes encontros (Ministério da Saúde, 2010, p.7).

Intensos foram os debates acerca dessa conceituação, desde a diferença de demandas para acolhimento nos três níveis de atenção no SUS, focando na amplitude de questões a serem acolhidas pelas eSF em seus territórios, até a burocratização do conceito que pode tornar acolhimento, um setor nas USF, não circulando por todos os membros das equipes de saúde, com a relevância ética, estética e política, discutida na citação acima.


Profundamente ligado à temática do acolhimento, está o conceito de escuta qualificada. O mesmo foi debatido à luz da complexidade dos processos de comunicação entre humanos. Como um usuário se comunica com as eSF e é escutado por essas mesmas equipes? Que impasses fazem parte do processo de enunciação da angústia, em forma de demanda, na relação usuários e eSF? Enfatizado como parte essencial para a construção de um acolhimento eficaz e humanizado, o conceito de escuta qualificada que,


(...) consiste em operar os processos de trabalho em saúde de forma a atender a todos que procuram os serviços de saúde, ouvindo seus pedidos e assumindo no serviço uma postura capaz de acolher e pactuar respostas mais adequadas aos usuários, implicando em uma escuta ampliada, em ambientes adequados, respeitando a singularidade dos usuários, considerando os motivos que os levaram a buscar o serviço, identificando suas necessidades e dando encaminhamento para a solução de seus problemas. A escuta das pessoas em seus lugares próprios, sem descaracterizá-los ou diminuí-las (Duarte et al., 2018, p.4).

Revelou a necessidade de que os profissionais de saúde do SUS, incluindo os ACS e ADM, pensassem sobre seus processos de comunicação. A comunicação entre humanos nasce marcada por embaraços e desafios. Compreendendo que emissor, mensagem e receptor mostram uma relação não linear durante o processo de comunicação, tendo a mensagem emitida variados atravessamentos ao ser recebida pelo receptor, tais como, diferenças culturais, de estado de ânimo e fatores socioeconômicos, vemos que a comunicação precisa ser entendida nessa sua essencial complexidade. Portanto, precisa ser, fundamentalmente, desnaturalizada, para que venha à tona como reflexão sobre os modos de falar e ouvir que utilizamos, quando atuando como profissionais de saúde do SUS. Em sendo assim, a temática da CNV foi oferecida como uma ferramenta para qualificação da comunicação entre usuários e equipe, assim como dos membros da equipe entre si.


A CNV é um processo sistematizado pelo psicólogo norte-americano Marshall

B. Rosenberg, o qual propõe um modelo de pensamento e comunicação eficaz, utilizando-se, especialmente, da empatia. CNV é uma prática que busca uma nova forma de se relacionar, apresentando ferramentas úteis no enfrentamento dos desafios que aparecem durante a comunicação, entre nós, seres humanos. Rosenberg (2006, p.23) denominou essa abordagem como CNV, baseado no termo “não violência” utilizado por Mahatma Gandhii, referindo-se a nosso estado compassivo natural quando a violência houver se afastado do coração. “Embora possamos não considerar “violenta” a maneira de falarmos, nossas palavras, não raro, induzem à mágoa e à dor, seja para os outros, seja para nós mesmos”.

A CNV se baseia em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a nossa capacidade de mantermos uma humanidade empática, mesmo em condições adversas. Pensar de forma não violenta nos conduz a uma reavaliação de nossas formas de falar, de confrontar, de entender o que nos é dito. “Nossas palavras, em vez de serem reações repetitivas e automáticas, tornam-se respostas conscientes, firmemente baseadas na consciência do que estamos percebendo, sentindo e desejando. Somos levados a nos expressar com honestidade e clareza, ao mesmo tempo, que damos aos outros uma atenção respeitosa e empática” (Rosemberg, 2006, p.24). No processo da CNV, segundo o autor, existem quatro componentes: observação sem avaliação; sentimentos; necessidades; pedido. Cabe-nos a construção de formas de pensar a comunicação, sempre com esses quatro componentes, articulados à empatia.


Durante a capacitação, tal ferramenta foi apresentada como uma proposta para qualificação da escuta, através de sua teoria fundante e exercícios práticos, baseados na dinâmica ‘Desenho às Cegas’ que foi adaptada para possibilitar uma experiência de imersão nos embaraços da comunicação. Além disso, após a discussão teórica, foi realizado um trabalho em grupo, quando os participantes tiveram que analisar vinhetas baseadas em situações reais, utilizando os conceitos da CNV que foram debatidos. Para além da qualificação da fala e da escuta, no acolhimento aos usuários do SUS, pensamos o uso da CNV para igual aperfeiçoamento, das relações de equipe, possibilitando que os problemas e os desafios dos relacionamentos interpessoais encontrem uma forma de serem comunicados de maneira não violenta, estabelecendo espaços permanentes de reflexão e transformação. Evidenciamos, durante a discussão da CNV, como os impasses interprofissionais tendem a ficar silenciados ou são tornadas falas paralelas às instâncias de decisão coletiva. Dessa forma, acabam não produzindo reflexão crítica, mas apenas angústia e sensação de impotência diante do trabalho, gerando sofrimento para os ACS e ADM participantes do processo, além de impactar as práticas, uma vez que a dimensão subjetiva das mesmas, quando não elaboradas, funciona como empecilhos para as boas condutas em saúde.

Verificamos a recepção, de alguns participantes, inicialmente cética acerca da ferramenta da CNV, o que foi se atravessando de uma maior abertura, especialmente durante a dinâmica que utilizou vinhetas inspiradas em situações vividas na rotina dos ACS nas USF. Ao final de cada aula sobre CNV, entretanto, evidenciamos um impacto geral positivo, reforçando a percepção da potência dessa ferramenta para o trabalho das ESF. Potência essa, também verificada por Antoniassi, Pessotto e Bergamin (2019), num estudo sobre o uso de práticas restaurativas, a saber processo circular e CNV, para intervenção junto a conflitos de uma eSF, o qual aponta como a “lógica de escuta qualificada e a utilização dos componentes da CNV contribuíram efetivamente para o planejamento em conjunto, despindo os participantes de julgamentos, permitindo que cada integrante pudesse contribuir de forma mais assertiva para o desenvolvimento das atividades propostas”.


O conceito de acolhimento foi, após essa fase, articulado com o conceito de linha de cuidado. Tal conceito foi apresentado, conforme discute Franco e Franco (2012), como uma imagem pensada para expressar os fluxos assistenciais seguros e garantidos ao usuário, no sentido de atender às suas necessidades de saúde. Representando o itinerário e o percurso que o usuário faz por dentro de uma rede de saúde, incluindo segmentos não necessariamente inseridos nesse sistema, mas que participam de alguma forma da rede, tal como entidades comunitárias e de assistência social. Discutimos como a ideia de linha aponta um fluxo a ser seguido, uma direção que orienta a equipe de saúde e o usuário, não sendo elementos fixos na rede, mas percursos que organizam o cuidado e que devem ser flexíveis, mas não pontos soltos sem articulação.

Foi enfatizado o quanto o conceito de linha de cuidado tem sua porta de entrada no processo de acolhimento, através da utilização da escuta qualificada, sendo necessário, como apontado por Franco e Franco (2012), definir quais linhas de cuidado serão montadas, visto que serviços de saúde têm inúmeros fluxos de cuidado funcionando, para cada grupo nosológico ou programas em atividade. Temos como exemplos de linhas de cuidado, saúde materno-infantil, do idoso, saúde mental, HIPERDIA e saúde bucal. Portanto, foi discutido como os ACS precisam saber quais linhas de cuidado estão ativas em sua USF e como são os fluxos. Só assim, poderão orientar melhor os usuários, após a realização de um acolhimento cuidadoso e qualificado, além de acompanhá-los em seu percurso na linha de cuidado ativada para o seu caso, ocupando adequadamente o seu lugar na longitudinalidade da atenção em saúde.


Quando ressaltamos a relação entre acolhimento e linhas de cuidados, nos embasamos nas diversas tecnologias em saúde, demonstrando a importância das tecnologias leves, como formulou Merhy (1997). Portanto, compreender acolhimento como uma tecnologia leve no trabalho em saúde mostra sua importância técnica para todos os processos e fluxos de atenção, devendo ser enfatizada como vital para que toda a rede de saúde funcione bem.


Apresentou-se, ainda, como o projeto terapêutico é o fio condutor para o fluxo da linha de cuidado (Franco; Franco, 2012), através da construção coletiva de um caso clínico com os alunos. Nesse processo, outro conceito debatido foi o de projeto terapêutico singular (PTS) e sua articulação com linhas de cuidado, como amarração de todos os atores, acordos clínicos e setores envolvidos no cuidado ao usuário, delineando-se qual o lugar do ACS no suporte ao usuário para adesão ao seu PTS.


Para reforçar tais conceitos, articulando-os com as experiências vividas pelos participantes, estes foram levados a realizar dinâmicas utilizando situações reais, debatendo as linhas de cuidado que deveriam ser incluídas no cuidado do usuário ou usuários envolvidos na situação real discutida.

Para finalizar, as atribuições dos ACS desde a Portaria n.º 1886 (Ministério da Saúde, 1997) até aquela atualmente em vigor, Portaria n.º 2436 (Ministério da Saúde, 2017), foram trabalhadas com os alunos, revelando o processo histórico de inserção dos ACS no SUS, as transformações ao longo do tempo e, essencialmente enfatizando, a importância desses profissionais para a APS, ao demonstrar como suas atribuições são amplas, complexas, exigindo permanente reflexão crítica e aquisição de conhecimentos.


RESULTADOS ALCANÇADOS


Decidimos incluir as apresentações em grupo dos participantes, na última aula da capacitação, como resultado alcançado, visto que a solicitação de uma apresentação livre – relato de caso, dramatização, produção escrita ou situação problema- articulando os conceitos discutidos, com uma reflexão sobre o trabalho cotidiano nas USF, teve uma resposta importante, no sentido da potência dessas articulações.


Foram muitos relatos de caso, dramatizações e reflexões sobre situações problema, de tal forma que as apresentações dos grupos se tornaram um potente evento de compartilhamento de experiências, refletidas ali à luz dos conceitos discutidos nas aulas anteriores. Um dos casos impactantes relatados versou sobre um usuário que se mantinha isolado em casa, há mais de um ano, decorrente de uma situação de violência que o fazia se sentir constantemente ameaçado, o que só foi possível de ser desconstruído, gradualmente, pela ação cotidiana e contínua da ACS. Ao relatar o caso, ficou claro, como a ACS ressignificou sua prática, redimensionando sua importância, ao entender que a mesma se aproximava completamente dos conceitos discutidos, tendo ela se utilizado de uma observação sem julgamento, aprimorando sua comunicação, através de uma escuta não violenta e tomando o acolhimento no campo da postura ética, ao construir uma ação customizada para a necessidade do usuário em questão.

Outra situação relevante, foi a apresentação de uma atuação considerada desastrosa e violenta, no processo de acolhimento de uma USF, tendo um usuário, em necessidade de realização de um procedimento, recebido como resposta que na USF não havia os insumos requeridos para seu caso e que o procedimento não poderia ser realizado, sem que alternativas fossem pensadas. O mal-estar em relação à conduta foi trazido à reflexão crítica e a situação foi rediscutida com base nos conceitos debatidos, sendo relatado como poderia ter sido, no caso de seguimento das diretrizes conceituais, com um acolhimento empático, utilizando CNV e que buscasse opções para a resolutividade da demanda do usuário.


Ressignificação das práticas e reflexão crítica sobre os erros e impasses apareceram na última aula, através das narrativas e relatos dos participantes, sendo por isso qualificado aqui, com um dos resultados alcançados pela capacitação.


Além disso, para avaliação do processo como um todo, os participantes foram convidados a preencher um questionário avaliativo, de perguntas abertas e de livre resposta, relatando o efeito ou não efeito da capacitação em suas vidas profissionais. Dos 310 inscritos, dentre ACS e ADM, 299 estiveram em, no mínimo, 3 das 4 aulas, preenchendo o questionário proposto no último encontro. Identificamos, dessa forma, uma adesão de 97,4% no total de inscritos.


As respostas dos questionários foram analisadas qualitativamente, não tendo sido identificada nenhuma delas versando sobre um não efeito da capacitação, dentre o total de 299 respondentes. Além disso, todos se disponibilizaram a participar de novas ações em EPS do NEPS/FEMAR e aceitaram ter suas respostas anonimamente divulgadas nesse artigo.

As descrições sobre os efeitos percebidos foram divididas em três categorias de análise: efeitos nas práticas, efeitos na comunicação e efeitos na relação com o trabalho. Como efeitos nas práticas, identificamos relatos de maior conscientização sobre as condutas no trabalho, a partir do esclarecimento de dúvidas sobre acolhimento, da melhor compreensão sobre o conceito de empatia e do entendimento de uma forma não violenta de comunicação como ferramenta técnica de trabalho. Como efeitos na comunicação, identificamos o reconhecimento da necessidade de aperfeiçoamento do saber escutar, para ser com mais exatidão, visto como experiência de valor, ampliando o respeito ao usuário. Além de descrições sobre retornos positivos com o uso da ferramenta da CNV. E, como efeitos na relação com o trabalho, identificamos falas sobre o alcance de uma nova visão do trabalho, a partir dos conteúdos discutidos na capacitação, que proporcionaram um olhar mais crítico sobre o comportamento laboral e um maior entendimento das atribuições profissionais.


Além dos resultados elencados acima, identificamos contribuições dos participantes para a rede de APS de Maricá como um todo. Durante os debates em aula, os participantes levantaram temas como: o papel dos controladores de acesso no acolhimento e, como em muitas USF, esses profissionais não estavam inseridos nas discussões sobre os processos de trabalho das unidades; a sobrecarga com funções internas e como desejariam estar, com parte da agenda de trabalho, voltada para ações de educação em saúde; a necessidade de que os conceitos discutidos na capacitação fossem também trabalhados com os demais profissionais da equipe técnica.


Tais contribuições foram levadas aos gestores locais, sendo apresentadas em reunião de devolutiva sobre o processo. Acerca do apontamento da necessidade de circulação da discussão dos conceitos pela equipe técnica, isso se materializou em nova ação de EPS do NEPS/FEMAR, com a construção de rodas de conversa sobre ‘Acolhimento e CNV em Saúde’ com médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos de enfermagem e saúde bucal de todas as USF de Maricá.


Dentre os impasses e desafios identificados, verificamos durante as aulas e nos debates acontecidos, uma ‘despontencialização’ marcante das eSF no que tange às ações regulares de EPS em seus territórios, uma desintegração do binômio ensino-serviço e uma necessidade premente de investimento no papel das USF de Maricá, como produtoras de EPS e campo de formação crítica dos profissionais de saúde do SUS.

Enquanto equipe condutora da capacitação, vivemos cada etapa como estimulante e desafiadora. Não finalizamos os processos intocados, o que reforça como a EPS pode ser transformadora tanto para educandos, como para educadores. A equipe do NEPS acompanhará os efeitos desse processo comparecendo às USF, para posteriores discussões e avaliação de impacto, assim como, seguirá as ações de EPS em Maricá de forma regular, aceitando o desafio que nos ficou colocado, sendo este relato de experiência o início de um projeto de longo prazo, que objetiva construir as condições, para a inclusão da lógica de EPS, nas ações cotidianas de saúde das equipes atuantes nesse município.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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